O autor inicia seu artigo com a questão: “Tudo começa com a pergunta que se repete há décadas: ‘Homeopatia é sinônimo de placebo?’ Esta antiga controvérsia tem sido esclarecida nos últimos anos, conforme a literatura científica indexada no PubMed, sobretudo em relação à elaboração de metanálises de estudos clínicos”.
QUESTIONAMENTO 1
O primeiro item de sua lista de referências é um artigo na prestigiosa revista The Lancet – em 2014, ela foi classificada em segundo lugar dentre as revistas médicas (fator de impacto 45) pelo Journal Citation Reports, atrás apenas do The New England Journal of Medicine (fator de impacto de 56): Shang A, Huwiler-Müntener K, Nartey L, et al. Comparative study of placebo- -controlled trials of homoeopathy and allopathy. Lancet. 2005;366(9487):726- 32. Reproduzimos ipsis litteris suas conclusões: “Biases are present in placebo-controlled trials of both homoeopathy and conventional medicine. When account was taken for these biases in the analysis, there was weak evidence for a specific effect of homoeopathic remedies, but strong evidence for specific effects of conventional interventions. This finding is compatible with the notion that the clinical effects of homoeopathy are placebo effects”. (O negrito é nosso).
Em português: “Vieses estão presentes em ensaios controlados por placebo tanto de homeopatia quanto de medicina convencional. Quando tais vieses são levados em consideração na análise, encontrou-se evidência fraca de efeito específico de remédios homeopáticos, mas evidência forte de efeitos específicos de intervenções convencionais. Este achado é compatível com a noção de que os efeitos clínicos da homeopatia são efeitos placebo”.
A referência em questão é parte de um bloco de 11 referências citadas no primeiro parágrafo para ilustrar, de forma panorâmica, a controvérsia sobre o tema e a importância de se conhecer os mecanismos biológicos por meio da pesquisa básica.
Não há dúvidas sobre o prestígio e a qualidade científica da revista The Lancet. Mas temas de fronteira e ainda pouco conhecidos pela comunidade científica são sempre desafiadores, tanto para os autores quanto para revisores e editores de revistas científicas, independente do periódico. A pandemia da Covid-19 tem sido um exemplo bastante didático sobre essa questão.
O artigo de Shang et al., 2005, desperta discussões até os dias de hoje. A observação da metodologia empregada nesta revisão revela um problema amostral decorrente de um problema conceitual associado às limitações da época. Embora louvável, a tentativa dos autores de buscar o maior número possível de artigos para compor uma revisão suficientemente sólida implicou na inclusão de diferentes abordagens terapêuticas usadas na prática homeopática em um mesmo grupo amostral, sem que fossem categorizadas em função do tipo de tratamento empregado (individualizado, não individualizado, nosódio, complexo homeopático). Os desfechos foram selecionados de forma randômica, a partir de ensaios clínicos prévios, registrados em base de dados, embora se saiba que ambos os sistemas terapêuticos (convencional e homeopático) produzem desfechos qualitativamente díspares, por se tratar de fenômenos distintos. Por exemplo: sabe-se, pelo conjunto de pesquisas básicas realizadas desde 1985, que medicamentos homeopáticos não são capazes de agir como agentes antimicrobianos, mas como imunomoduladores [Bonamin, Bellavite, 2015]. A não observação desse aspecto fenomenológico na elaboração do desenho experimental clínico pode gerar vieses importantes, sobretudo quando a seleção dos desfechos é feita de forma randômica. Não se pode descartar, portanto, um provável e significativo aumento da variância e, consequentemente, de seu impacto na análise estatística, sem que tais particularidades tivessem sido observadas a priori. Conforme demonstrado em revisões posteriores [Mathie et al., 2017, 2018, 2019], a categorização dos tratamentos e dos desfechos permite uma análise mais acurada dos ensaios clínicos placebo-controlados.
É natural que autores não familiarizados com o tema, há 15 anos atrás, apresentassem certas limitações na elaboração do desenho do estudo. Essa mesma observação vale para os revisores do artigo.
QUESTIONAMENTO 2
O autor também comenta: “Desde 2010, quando se constatou pela primeira vez que preparações homeopáticas em altas potências apresentavam uma miríade de nanopartículas de natureza diversa em suspensão [38], rapidamente se cogitou a possibilidade do mecanismo de ação dos medicamentos homeopáticos estar associado à nanofarmacologia. Tais observações têm se repetido ao longo dos últimos anos, sobretudo em experimentos desenvolvidos na Índia [39-41]”.
Os estudos citados nas referências – em que preparados homeopáticos são submetidos a análises por meio de microscopia eletrônica ou espectrometria, com detecção alegada de partículas tão pequenas quanto 3 nanômetros, o tamanho aproximado de 30 átomos – sofrem com ausência de controles (os autores não se deram ao trabalho de analisar amostras de água de torneira, por exemplo, e ver se ali também não apareceriam nanopartículas de “princípios ativos”), e um deles, correspondendo à referência [39], foi publicado num periódico, “International Journal of Current Research”, listado como predatório.
Outro, a referência [40], além de não ter controles, aponta como significativa a presença de nanopartículas de silício na solução homeopática – o que, respeitosamente, sugerimos poder ser explicado pelo tradicional método de se acondicionar líquidos em recipientes de vidro.
Os mecanismos físico-químicos associados às preparações homeopáticas são ainda desconhecidos, como afirmado no parágrafo seguinte àqueles referidos pelo leitor, no mesmo capítulo:
“(…) contudo, ainda não se sabe quais desses fatores são realmente determinantes para que ocorram modulações de funções celulares de forma tão refinada, tampouco como a informação contida nos medicamentos são decodificadas pelos sistemas vivos (…)”.
Dessa forma, entende-se que as citações mencionadas não foram bem compreendidas, uma vez que não tratam de “explicações sobre como a homeopatia funciona”, mas de uma descrição suscinta dos dados registrados sobre pesquisas físico-químicas até 2017, quando o dossiê foi publicado.
Os ensaios sobre nanopartículas necessitariam, sim, de controles adequados para se fazer qualquer inferência ou demonstração sobre os mecanismos de ação, mas esse não era o objetivo desses trabalhos à época. Os estudos citados são de caráter puramente descritivo, cujo mérito foi mostrar que diluições acima do número de Avogadro não são “desprovidas de qualquer substância”, mas contêm nano-estruturas, as quais nunca haviam sido consideradas até então. É natural que tais achados suscitem hipóteses, mas são apenas hipóteses, conforme descrito no final do capítulo em questão:
“Desde 2010, quando se constatou pela primeira vez que preparações homeopáticas em altas potências apresentavam uma miríade de nanopartículas de natureza diversa em suspensão, rapidamente se cogitou a possibilidade do mecanismo de ação dos medicamentos homeopáticos estar associado à nanofarmacologia” (O negrito é nosso).
Cabe ressaltar que os autores mencionados avançaram em suas pesquisas nos anos seguintes, mostrando que tais nanopartículas (contaminantes ou não) organizam-se em complexos e sofrem mudanças físico-químicas durante os procedimentos de trituração e sucussão, etapas fundamentais da farmacotécnica homeopática. Alguns artigos do mesmo grupo foram publicados na revista Langmuir, mantida pela American Chemical Society [Chikramane et al., 2012; Basu et al., 2020].
É fato que ainda há muito o que se compreender sobre esses achados, mas, sem dúvida é uma linha de pesquisa com grande potencial para novas descobertas. A citação desses trabalhos no capítulo foi um convite para que jovens pesquisadores se interessassem a atuar nesse campo. A questão dos mecanismos de ação permanece em aberto até hoje e a pesquisa básica em homeopatia segue avançando rumo às respostas necessárias.
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Fonte: amhb.org.br
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